quarta-feira, 19 de março de 2008

Prosa para Clarice

“o grande problema é o tempo que teima em passar”


Quando o tempo passar sobre nós, abrir o já desconexo, remexer o desconhecido que há por dentro, transformaremo-nos em palavras ao vento. Por mais cedo que seja será tarde, tarde pra recomeçar algo que jamais acabou, sem ter o luxo dos finais felizes ou mesmo um grande final. Tudo assim será, assim como não era pra ser, enfim, o tempo passar, pois ele não deveria ousar em se mexer, mudar o que está bom, estacionar o verbo no presente sem ligá-lo a nada. Enquanto estiver distraída, o tempo passará, antes do desencontro, antes da ligação não-feita, do amor não-atendido, simplesmente passará, entre o breve limiar dos ponteiros, entre a viagem da carta não respondida. Eu vou, eu ando, eu teimo, eu amo.

terça-feira, 18 de março de 2008

Tatos


1

Castigo é não saber minha identidade

perigo é não me encontrar embaixo de

um céu aberto

Quem um dia contará a história da vida?

Terá ela vivido algum dia?

O sol se vai para o tempo fechar

A vida permanece a mesma

menos luz

mais luz

mais ou menos viva


2

Beijo tua boca

ao som de The Cure

E não me importa a roupa

a ira que despe o corpo

o desejo que atravessa a nuca

Nunca cruzam as paredes

Um híbrido som de gemidos

e a voz enjoada de Robert Smith.


3

Cortava folhas de verdade

Com retratos de uma vida perdida

“J'aime ma nouvelle identité”

sorria frente ao espelho

e soprava as velhas fotografias

pela janela aberta.


4

São coisas que me preocupam

A intensidade da dor,

a falta por si própria,

por ser dor,por ser falta

por ser própria

São vastos ruídos

ou incerta certeza

onde encontro todas as respostas

do mais invariável poema

por ter respostas

por ter encontro

até perder de vista

até perder a dor

a falta

o próprio poema.


5

Ausente no amor

Sorte no jogo

Pediu uma dose dupla

além de duas cartas

Combinações quase perfeitas

expostas na mesa

lá perdeu quase tudo

naquela noite.

Foi assim que beijou sua dama

e a fez mulher de verdade

pela primeira vez.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Poema para Ana C.

“Muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz” Armando Freitas Filho


Algo para além do corpo

enquanto matéria

Para que limitar sua moradia?

Habitar um lugar não inevitável?

Sobrevoa entre esquinas e jardins

Tudo então é palpável

É o céu gris que recua quando tento tocá-lo

E é assim que toco

a esfera do impossível.

Júlia

Seguindo a vida batendo a porta para a outra. Diga-me então se nunca pensou em ter um bebê. Às vezes parece fácil quando se imagina, fácil até quando se espera o que imaginou. Ela veio mansa, no passo de repente e abriu o tempo. Todas as esperas nunca são como o próprio dia em que ficará conhecido como seu aniversário, seguido de batidas de corações. E todo dia é querer o depois, planejar o tempo pós-encontrado para o amor. O nascimento. Ela, é tão pequenina, é de doar sorrisos para qualquer direção. Aos poucos vai tomando conta de um todo,de todos, quando se der conta, só basta sorrir. A mãe não volta da mesa de cirurgia para o quarto, o tanto do tempo que esperava um sorriso a três entre os mesmos lençóis. Pequena Júlia, somos um par dos desencontros, o par do aval de Deus, agora e no sempre. Veio sem esperar.