quarta-feira, 11 de março de 2009

Uma nova margem para Rosa

“e eu não podia...” A Terceira Margem do Rio, G. Rosa

...mas ele prosseguiu, remou adiante, até chegar às margens e estendeu sua mão. Pálido como nuvem em dias de sol, que nunca ficam amorenadas e nervoso pra lá da conta, só tive uma reação. Pulei no barco sem birra e ele assim pode descer, tomei seu remo e o deixei, assim como ele em tempos passados. E pensar que há poucas horas vivia à espera, hoje sou o novo senhor dessa cisma. Ele cortou enfim a corda feita de cipó-espinheiro e com os pés sobre o barranco, empurrou a proa de ponta para ser guiada pela correnteza. O pai então voltou pra casa, abraçou a mãe e a amansou ao me ver partir, rumo abaixo, rio a fora. Tomei a decisão feita por meu velho pai. De ser um dia homem dos rios, brav'água sobre as margens.

Ilha

Parece que não há o doce mar
nem espelho d' água
Revolto mar, se volta a quem
quer entrar,
atroz com quem lhe rema
É essa onda que não cessa de bater,
e a solidão, essa que veio a varar
apruma o barco na areia,
desembarca a dor no além
e vela.

terça-feira, 3 de março de 2009

Travessia

Endereço-me a ti
Despertando e desprendendo
o suor que desce o corpo como singela liquidez
em sua forma mais abrupta
Uma ruptura que se encontra nos fios de cabelos
untados a fartas mãos, o desejo amalgamado
Dobrando as esquinas
invertendo as mãos
Por um abismo que endereço e pulo
Agora já podemos fechar a janela.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Metamorfose

É o que passa com ela
por ela, pra ela,
nas valises do tempo.
Diz um pouco do nada,
um pouco ou algo mais de mim
Meta-amor de risos narcíseos
nos sorrisos o relato do que
sempre escapa ao amor enquanto amor.

Casa vazia

Dentro ou fora, e fora
Onde não apóio meus pés
onde não me conforto com o retorno.
Vazia casa, vaga o amanhã,
assombra a falta de teto,
aparta os joelhos dobrados.
E joga no lance da vida,
labiríntica e contínua,
linhas sem retas ,
trilhas sem retorno e sem fim.

Um último romance

" o cronista é um etilita..." Affonso Romano de Sant'anna

Parecia mais um dia gris. Um dia não tão raro, como os outros. E antes de qualquer boa (ou má) aula, uma parada para o café. Abri o "Temor e tremor", do Kierkegaard, e lia justamente o trecho onde o filósofo dinamarquês citava Heráclito, o "obscuro" Heráclito que dizia sobre a impossibilidade de se banhar mais de uma vez no mesmo rio. Depois, corrigido para o não poder sequer se banhar uma vez só no mesmo rio.
Foi diante dessa travessia que me deparei com um casal de velhinhos, na mesa da frente. Não que a leitura estivesse ruim, mas era uma cena inédita quanto a um banho no rio. O velho homem, por volta dos 70, oscilava entre um galanteador e um cafajeste de primeira, usava uma camisa de botão semi-aberta, cordão de ouro, cabelo e sapato intocáveis. Ela, por volta dos 60 anos, usava óculos arredondados, cordão de madeirinhas (não sei se era "hippie" ou "indígena"). O seu coque alto, chamado de "bomba atômica", não fazia jus ao seu meigo sorriso. E entre um sorriso e outro, o papo galanteador era o subterfúgio para as mãos se tocarem. Mas ela o recusava. Imediatamente ele relembrava de bons momentos de outrora, do passado dos dois, de longos carnavais, e ela quase sempre encerrava as frases com um "agora é diferente...", e o silêncio pairava por alguns instantes.
Apesar de todos os recursos, do cabelo intocável, e do clima nostálgico, ao final do café ela foi embora. O velhinho então abotoou a camisa, terminou o café frio, e só, ficou por mais uns dois minutos. Naqueles dois minutos, já no final do segundo café, acredito que tenha entendido Heráclito pela primeira vez.

sábado, 13 de setembro de 2008

Espelho

"É porque eu não sou um comigo mesmo que eu posso falar com o outro..." J. Derrida

Odeio ficar só
mas não quero ninguém tão perto
Os anos passam por entre as falhas da barba
onde já me falta o ímpeto da juventude
e a perseverança dos mais velhos
Falta o abraço macio
desse amor invisível.