quarta-feira, 21 de novembro de 2007

som do terceiro andar

"o homem receia a ausência do som tal como receia a ausência da vida"

Murray Schafer


estava indócil para saber de onde vinha o som. era algo,pasmem,bem comum,era sax. localizá-lo e por fim bendizê-lo era a loucura. porque toda à noite, sempre às sete,o metal vibrava. não havia sonoridade brilhante,embora há de se convir o que havia brilhantismo na execução. Jogava notas dissonantes sempre acompanhadas de um som que margeavam os limites da imaginação,nítido que era o mais psicodélico que já ouvi. é claro que pareciam combinar também com as reclamações dos vizinhos,sempre orquestrados pela gorda do 403. em algumas noites matutava sozinho,perambulando pelos corredores para saber sua fisionomia,se era velho (a),novo (a),se compartilhava com a gordura e o lanche noturno (passos que ecoavam estrondosamente) com a maestrina do 403. pensei em tocar a campainha e correr,bem no jeito moleque,e depois de relutar sobre o ato,o fiz incansavelmente em busca de resposta. nunca tive resposta e embora curtisse esse momento nostálgico já estava na hora de mudar de plano. com a chuva toda que caia no Rio,estava difícil locomover meu velho fusca até a loja para comprar um gravador. pois bem que logo após a frustração, vi numa dessas lojas de lixaria chinesa uma flauta doce e não pensei em outra coisa. um dueto! relevei o habitual horário do jantar e silenciosamente comecei a pestanejar ,ensaiando para a apresentação de logo mais.as sete. estava horroroso o som e perfeito ao mesmo tempo,o tenebroso diante do psicodélico. enfim o relógio disse q eram temidas sete horas.na primeira seqüência de notas dadas pelo sax,as esdrúxulas notas da flauta as acompanhavam,formando um som-da-porra.dessa vez,mais manifestações de vizinhos como turba enfurecida ecoava sobre a transcendência musical.fiz parte desse show. foi uma noite bem dormida,atrapalhada apenas pelos passos magistrais da musicista obesa. faltei o trabalho,afinal,precisava de uma vez por todas,de um gravador para registrar o que ocorreria na noite seguinte. botei o fusca para encarar o pé d´água e conseguir ter o fruto do mais novo dueto da praça,coadjuvado por vizinhos do subúrbio em incansáveis insultos. o plantão na porta da loja foi recompensado por um philips de última geração,alemão,com madeiras em volta. localizei-o próximo à parede,coloquei uma bosch virgem e fiquei a esperar com a flauta em meu posto. às sete não soou nota sequer,além do silêncio (acredito existir um som dentro dele). emudecido,voltei a bater sua porta,agora como ares de cobrança e como de praxe,nada. durante duas semanas o gravador era ligado para gravar o som do silêncio. anos depois,não se soube o paradeiro dessa pessoa,além de suas músicas,e por uma vez ou outra, falavam sobre um dueto.e sempre que coloco o gravador para tocar,o som guardado na fita se mistura com o som que tinha na minha mente,criando um terceiro,sempre diferente.