quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Um último romance

" o cronista é um etilita..." Affonso Romano de Sant'anna

Parecia mais um dia gris. Um dia não tão raro, como os outros. E antes de qualquer boa (ou má) aula, uma parada para o café. Abri o "Temor e tremor", do Kierkegaard, e lia justamente o trecho onde o filósofo dinamarquês citava Heráclito, o "obscuro" Heráclito que dizia sobre a impossibilidade de se banhar mais de uma vez no mesmo rio. Depois, corrigido para o não poder sequer se banhar uma vez só no mesmo rio.
Foi diante dessa travessia que me deparei com um casal de velhinhos, na mesa da frente. Não que a leitura estivesse ruim, mas era uma cena inédita quanto a um banho no rio. O velho homem, por volta dos 70, oscilava entre um galanteador e um cafajeste de primeira, usava uma camisa de botão semi-aberta, cordão de ouro, cabelo e sapato intocáveis. Ela, por volta dos 60 anos, usava óculos arredondados, cordão de madeirinhas (não sei se era "hippie" ou "indígena"). O seu coque alto, chamado de "bomba atômica", não fazia jus ao seu meigo sorriso. E entre um sorriso e outro, o papo galanteador era o subterfúgio para as mãos se tocarem. Mas ela o recusava. Imediatamente ele relembrava de bons momentos de outrora, do passado dos dois, de longos carnavais, e ela quase sempre encerrava as frases com um "agora é diferente...", e o silêncio pairava por alguns instantes.
Apesar de todos os recursos, do cabelo intocável, e do clima nostálgico, ao final do café ela foi embora. O velhinho então abotoou a camisa, terminou o café frio, e só, ficou por mais uns dois minutos. Naqueles dois minutos, já no final do segundo café, acredito que tenha entendido Heráclito pela primeira vez.